Todos os direitos ao autor (Sorin Markov). Imagem disponível em https://www.bing.com/images/blob?bcid=Trvhf1paJoUDLzNhQCJIlzpKVlqe.....5Q. Data de acesso: 29.11.2021

Itzal do sangue empoçado

Mateus Martins

--

“Dizem que os servos do Deus da Morte são capazes de enxergar o momento em que uma pessoa deve fazer a travessia entre essa vida e a mortalha. A verdade é que sempre tentam evitar que alguém atravesse-a antes ou depois do momento ideal. Ao menos é isso que a maioria faz. Alguns desses homens parecem preocupados apenas em fazer com que o máximo de almas possível faça a passagem e que o Deus da Morte esteja sempre recebendo mais almas para seu séquito. Enquanto os moribundos podem sentir-se abençoados com a presença de um servo de Egos, os demais nem sempre podem considerar-se com sorte ao encontrar com um. Na verdade, pode ser que eles sejam apenas moribundos que ainda não descobriram seu estado — ou foram deixados nele.” — Contos Inacabados, reunidos, organizados e transcritos por Hector Balatuta II.

Itzal cavalgava displicentemente, cabisbaixo e pensativo. Seu rosto tinha uma expressão calma, quase sonolenta. Trajava uma capa pesada e gasta, que caia por cima do lombo de sua montaria e com um capuz que cobria-lhe a cabeça e projetava sombras sobre seu rosto. Os alforjes, pendurados na parte traseira da égua, tilintavam em alto e bom som, rompendo o silêncio da floresta que o cercava. Ele sabia do perigo que era cavalgar sozinho por aquela parte da Estrada Imperial, que recentemente havia começado a sofrer com uma subida vertiginosa no índice de crimes contra viajantes. Ao menos, foi o que conseguiu apurar dos burburinhos e fofocas que escutou na última estalagem em que estivera, quase dois dias de viagem atrás.

Num trecho mais estreito da estrada, espremido entre as árvores e uma acentuada elevação no terreno, Itzal sentiu sua montaria cessar a cavalgada. Foi imediatamente arrancado do transe que seus pensamentos haviam o colocado. Ergueu a cabeça devagar, com seus olhos cor-de-âmbar buscando a causa da parada — e tinha plena consciência que deveria haver uma causa, pois Nuvem, sua égua, era uma das montarias mais disciplinadas que teve o prazer de cavalgar. Sentiu-a bufar e estremecer sob suas pernas, ao mesmo tempo em que identificou o motivo da parada. Poucos metros à frente, um enorme tronco de árvore bloqueava a estrada. Nuvem poderia saltar por cima dele sem problemas, não fossem os galhos e arbustos que estavam sobre ele — e que não podiam ter chegado ali de maneira natural, Itzal tinha certeza.

Desceu lentamente da cela, sentindo um pouco de dor em suas coxas pelo tempo despendido sobre a mesma. Havia semanas que tinha embarcado naquela jornada, tudo por causa daquele tenebroso líder religioso. Enquanto dava os primeiros passos em direção ao tronco de árvore para verificar, lembrou-se do motivo dele odiar sacerdotes e outras figuras sagradas. Apesar do descontentamento com toda a situação, nada lhe transparecia no rosto, sombriamente impassivo. Quando estava a poucos passos da árvore, ouviu um estalido alto, um galho se partindo. Virou-se lentamente e não lhe agradou nem um pouco a visão que teve. De pé, ao lado de Nuvem, uma dupla de salteadores maltrapilhos, metidos em gibões de couro surrado, lhe encaravam. Ambos carregavam espadas meio sujas e carcomidas, assim como os dentes que exibiam em sorrisos malignos.

— Olha só, parece que encontramos um peixe grande dessa voz!

A voz do homem mais parecia um chiado. O seu companheiro deu uma risada baixa e tosca, direcionando-se para o alforge quase que por instinto e começando a revirá-lo. Itzal nada deixou transparecer, mas por baixo da capa seus músculos se retesaram rudemente.

— Enquanto a você, meu camarada, sugiro não fazer nada burro! Nós vamos levar tudo que cê’ e você vai ficar ai, quietinho! Caso contrário, vamos te pendurar de cabeça pra baixo e te deixar sangrando igual um porco!

Ele sentiu sinceridade naquelas palavras, não retrucou.

— Chefe, ele tem muita coisa aqui! Melhor chamar os outros pra carregar!

Disse o capanga que revirava os alforjes. O outro, que vigiava Itzal, virou-se e deu um assobio alto e prolongado. De detrás de alguns arbustos, outros dois assaltantes igualmente mais vestidos saltaram e começaram a ajudar a desprender os alforjes da égua. Uma terceira figura surgiu, puxando a ponta de uma corda que arrastava no chão em direção a floresta.

Enquanto a figura caminhava em direção às demais, a corda retesou-se subitamente. O homem quase perdeu o equilíbrio e, com uma expressão de fúria, puxou com as duas mãos a ponta da corda. Uma figura maltrapilha e machucada saiu do meio da vegetação, com os pulsos amarrados pela outra extremidade da corda. A figura caiu de supetão, emitindo um grito aparentemente feminino. O homem aproximou-se dela e chutou-lhe a barriga, segurando-a pelos cabelos e confirmando trazendo seu rosto, agora notoriamente feminino, para junto do dele. Cuspiu na face da mulher e deu-lhe um tapa, atirando-a no chão.

— Cuidado para não bater muito nela, ainda quero esse rostinho inteiro para mais tarde!

Disse o provável líder, dando uma gargalhada em seguida.

— Já vamos acabar com esse aqui!

E seus olhos se voltaram para Itzal, que já não estava mais onde o homem havia o visto pela última vez. Num piscar de olhos, ele havia cruzado toda a distância que os separava, derrubando o salteador com um soco estrondoso em seu estômago. Enquanto ele ia ao chão, Itzal tomou a espada de sua mão e executou um salto acompanhado de um giro veloz com a lâmina, que decepou a mão do homem que segurava a corda, fazendo com que o sangue jorrasse em cascata sobre a jovem mulher ajoelhada no chão. O homem arregalou os olhos, com uma expressão de completo choque. Antes que pudesse se virar para ver o rosto de seu agressor, a espada atravessou-lhe a garganta através de sua espinha. Ele caiu completamente inerte, numa poça de sangue crescente. Quando os outros três assaltantes deram por si, dois dos seus companheiros já haviam caído.

— RATO, FAÇA A SUA PARTE!

Gritou um deles, na intenção de fazer com que um de seus companheiros, que estava escondido no alto da elevação no terreno e armado com arco e flecha, disparasse contra a figura encapuzada de Itzal, coisa que já devia ter feito a partir do momento em que ele saiu de perto da árvore, como haviam combinado para o arqueiro fazer.

— Ele não pode ouvir vocês.

Os homens se arrepiaram com a voz sombria de Itzal, dotada de uma frieza quase gélida. Rapidamente largaram as coisas que tinham em mãos e se posicionaram para lutar, circulando a figura encapuzada aos poucos. Eram especialistas em lutar quando estavam em vantagem numérica, “à moda dos covardes”, como diziam em Narazar. Assim que sentiram uma brecha, atacaram todos ao mesmo tempo, saltando na direção da sua vítima com uivos tenebrosos e olhares furiosos e amedrontados.

Parado no centro do ataque, Itzal deu um passo para trás para esquivar do primeiro golpe, aparando o segundo com a lâmina e chutando o joelho do terceiro homem antes que esse pudesse alcançá-lo. Aproveitou o movimento de aparar e girou o corpo num giro completo, cravando a espada entre as costelas do agressor. O primeiro se recuperou do golpe errado e tentou estocá-lo, mas ele apenas girou a espada dentro do corpo do homem que havia acabado de perfurar e usou o corpo do mesmo como escudo. O homem, estocado pela segunda vez, cuspiu sangue no rosto de seu antigo camarada e desfaleceu. Itzal chutou-o sobre o assaltante, que caiu desprevenido. O terceiro assaltante ainda estava se recuperando do golpe no joelho e, antes que pudesse se levantar completamente, teve a garganta cortada.

O último assaltante jogou o corpo de seu companheiro para o lado, tirando-o de cima de si, com uma expressão de puro terror em seu rosto. Tentou rastejar para trás enquanto observava Itzal virar-se na sua direção. Gaguejou algumas palavras enquanto tentava implorar por misericórdia.

— Piedade e misericórdia são as maiores ofensas que um homem pode oferecer.

Disse Itzal enquanto caminhava. O homem tentou virar-se para levantar e correr, mas sentiu a espada do seu carrasco atravessar-lhe a espinha na altura do pescoço. Caiu no chão imóvel, boquiaberto e com uma expressão pavorosa.

Ele largou a espada no chão, ao lado do corpo do homem, balançando as mãos para livrar-se do sangue que havia se acumulado em excesso sobre elas. Foi quando ouviu um grito de pavor vindo da mulher que estava sendo mantida cativa. Ele quase havia esquecido dela. Ela havia assistido um massacre terrível e impiedoso, o que a deixou completamente abalada. O grito foi seguido por um pranto de pânico e desespero, com a mulher chorando e soluçando violentamente. Itzal caminhou até ela lentamente, parando ao seu lado. Imediatamente, a mulher atirou-se aos seus pés, agradecendo e chorando em proporções iguais, senão muito parecidas.

— Aqueles homens pretendiam matá-la, vi em seus olhos.

A mulher desabou numa crise de choro, quase grata. Demorou alguns instantes para que conseguisse finalmente se controlar e formular algumas palavras em sequência.

— Muito obrigado! O senhor me salvou! Eles estavam comigo há dias! Disseram que eu já tinha pouca serventia e que iam se livrar de mim em breve!

Sua voz era trêmula e assustada.

— Muito bem então, seu destino já estava traçado por eles, caso não me encontrassem.

Ela fez que sim com a cabeça, enxugando as lágrimas numa das mangas do vestido que usava e finalmente soltando a barra da capa de Itzal. Um sorriso de esperança começou a tomar conta de seu rosto.

— Não cabe a mim mudá-lo, então.

O sorriso no rosto da mulher desapareceu assim que ela tomou entendimento da gravidade daquelas palavras. Começou a balançar a cabeça violentamente, caindo sentada para trás e tentando virar-se para correr. Itzal tirou de debaixo da capa uma adaga prateada, com um rubi avermelhado cravado na empunhadura e caminhou na direção da mulher.

Rato virou-se devagar. Não lembrava do que havia acontecido, exceto que tinha que vigiar o homem que estava parado perto do tronco caído enquanto os outros roubavam as coisas dele. Caso o homem se mexesse, tinha ordens para atirar um tiro de aviso. Caso ele insistisse, devia atirar para matar. Porém, enquanto vigiava, sentiu que o homem olhou rapidamente em sua direção e a partir daí seus olhos ficaram cada vez mais pesados. Talvez tivesse caído no sono. Com sorte, seu bando já devia ter acabado de saquear e despachado a figura para o interior da floresta. Com azar, o homem devia ter fugido e ele estaria encrencado. Torceu para tratar-se da primeira opção. Arrastou-se até a beira da elevação, para ver o que havia acontecido e ficou surpreso quando reparou que tudo estava vazio lá embaixo. Tomou um susto quando ouviu um relincho atrás de si, levantando-se num pulo.

— Não devia dormir em serviço.

Itzal o observava com uma expressão calma. O rapaz era pequeno e mirrado, jovem e maltrapilho. Seus cabelos não viam um bom corte devia fazer meses e seus olhos eram grandes e atentos. O apelido de Rato lhe caia bem.

O jovem estremeceu de medo, buscou seu arco e flecha mas logo percebeu que seria inútil. Se o homem estava ali, seus companheiros com certeza estavam todos mortos. Sentiu um arrepio percorrer sua espinha quando um raio de luz dos Gêmeos Prateados atravessou as nuvens e iluminou a figura que o encarava. Itzal era alto, chegando assustadoramente perto dos dois metros de altura. Estava metido numa armadura de couro tingida de preto, com detalhes em cinza. Seus cabelos eram de um branco acinzentado e sua tez era pálida como a pior nevasca de inverno. Seus olhos eram dois globos penetrantes cor-de-âmbar, carregados de uma sobrenatural frieza.

— Não se preocupe, Rato. Seu destino não é morrer hoje.

E estendeu-lhe a mão. Rato observou-a em silêncio por vários instantes, pensando em tudo que havia acontecido. Verdadeiramente não gostava nem um pouco do bando onde havia se metido, era constantemente surrado e insultado, sempre incumbido das piores tarefas. Todavia, temia fugir por medo da perseguição que podia sofrer por parte de seus companheiros, que não costumavam deixar pontas soltas. Aquele estranho não só tinha o livrado do fardo de acompanhá-los, como também o havia poupado — pelo menos até agora — e lhe estendia a mão. Hesitou por alguns instantes antes de estender a mão.

--

--

Mateus Martins

Pernambucano, estudante de História, autor de contos e poesias em momentos tristes de minha existência.